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A inteligência mais secreta de todas

valter hugo mãe escreve que a inteligência mais secreta de todas é o amor. Disse-se muito, quando o “o apocalipse dos trabalhadores” chegou aos leitores, que era um livro sobre o desemprego, sobre a vida difícil dos que têm de suar para levá-la. Não é.

Claro que hugo mãe fala de imigração, de uma fatia de país a contar moedas. Mas “o apocalipse dos trabalhadores” é essencialmente – para este leitor mas se calhar não para outro – um romance sobre o amor e a morte, dois temas que servem de pão às histórias desde que começámos a contá-las. Pode ser inovador (e até é) noutros aspectos. Neste é tão clássico como os clássicos.

Estamos em Bragança, a norte mas já longe das Caxinas natais do autor. A gente lembra-se de Bragança nos últimos anos porque houve a história das brasileiras que davam o corpo aos senhores da terra em troca de umas notas. Eram as Mães de Bragança. Nesta história não há brasileiras mas as mulheres também se acham putas. Não há essa rapaziada do outro lado do Atlântico mas há igualmente estrangeiros à procura do ganha-pão. Só que estes estrangeiros são da nova vaga, chegam do leste e do frio. E são, nas maneiras, como o clima da terra que os viu nascer. Pelo menos alguns.

valter hugo mãe fez um livro sobre mulheres – ou em que mandam as mulheres – que às vezes nos transporta para as estradas de “Volver”, de Pedro Almodóvar, com femininas meio loucas, que antes de mandarem nos seus homens querem mandar nas suas vidas, que querem ser e ter o direito de odiar e amar à vez conforme lhes pareça ocasião.

A personagem central é a maria da graça, mulher-a-dias que esfrega o coração no chão enquanto se vai apaixonando por um velho intelectual. A melhor amiga é a quitéria, que há-de embeiçar-se por um desses machos que vêm do frio. Uma e outra gostam que os homens se ponham nelas, como escreve o autor. Depois há esse senhor ferreira que é o reduto da ilustração numa terra de brutos, esse andriy que tem um pai maluco da guerra e é máquina por fora e criança por dentro. Há ainda um cachopo que vive nos montes como se só precisasse de pedras para medrar; e um marido corno que escapa de se afogar no mar que lhe dá trabalho para quase naufragar na lixívia que a mulher lhe põe na sopa quando volta a casa.

“o apocalipse dos trabalhadores” vai de Bragança à Ucrânia como vai do riso à lágrima. O autor, que o escreveu já depois de vencer o Prémio Saramago com “o remorso de baltazar serapião” – possivelmente o seu melhor romance – traz para as letras os dias de gente simples, ao mesmo tempo que os embrulha numa teia complexa. As vozes narrativas e as linhas temporais vão saltitando, às vezes com intervalos de páginas, mais adiante de parágrafo em parágrafo.

valter hugo mãe escreve bem, tem um tom encantatório e pede atenção ao leitor, exige dele, o que se louva – porque ler não tem de ser (mas pode ser) um exercício de descontracção e uma coisa facílima. Ler pode dar trabalho. Bom trabalho.

O único revés em escrever bem, neste livro, é que escrever bem é perigoso quando se constroem personagens que têm de falar mal. Mesmo que uma delas, a maria da graça, ande às voltas com um velho que lhe fala de Goya e Mozart antes de lhe arrancar a roupa. Por mais que seja assim – e por mais que o escritor consiga quase sempre salvar o barco – lá há umas vezes em que saem da boca das mulheres-a-dias palavras mais apropriadas a uma senhora polida ou, vá lá, a uma escritora. Quando o povo fala nos livros deve falar como fala o povo. E isso, já se sabe, não é de fácil feitura.

Mas quer estejamos mais ou menos convencidos com as personagens, o que não se apaga são as frases e passagens sublimes (e há muitas) com que valter hugo mãe mima quem o lê. A prosa raras vezes foi tão poética e pensada para ser poética. Assim: “quando bebeu o primeiro gole de vinho julgou que a vida, se fosse justa, poderia ser feita daquilo e de mais nada. ao inventar as coisas, quem inventara, deveria ter-se ficado por aquilo, um vinho, uma amizade sincera, o calor magnífico do fim da tarde, a paisagem mais bela de todas. era tão fácil inventar só aquilo e só com aquilo garantir com segurança que as pessoas do mundo inteiro seriam felizes” (pp. 146).

Os sonhos, os “pontapés no cu de deus”, os espiões, as carpideiras e os homens sem cabeça fazem o resto. Estamos em território vizinho do realismo mágico. Só que estamos em Portugal e no mais profundo de Portugal. “o que nos vale é que somos tão do fundo da sociedade que nem temos direito a ir abaixo” (pp. 106).

Hélder Beja

 

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