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Notícias do bloqueio: a quarentena vista a partir de Wuhan

por Stacey Qiao

O diário que a autora chinesa Fang Fang 方 方 escreveu ao longo da quarentena chega agora à edição inglesa, mostrando um pouco do que sucedeu em Wuhan durante o longo isolamento provocado pela COVID-19.

Fang Fang 方 方, em Wuhan (Fevereiro 2020)

Quando Fang Fang 方 方 percebeu que a sua cidade, Wuhan, era o epicentro do surto de COVID-19, e que estava presa em casa como os outros 9 milhões de habitantes da cidade, o instinto de escritora levou-a a registar tudo o que viu e sentiu. As suas anotações on-line tornaram-se uma janela para as pessoas de fora vislumbrarem Wuhan nos momentos mais difíceis e as suas palavras acabaram por ser lidas como uma espécie de consciência da cidade. No passado dia 15 de Maio, Wuhan Diary: Dispatches from a Quarantined City, um poderoso relato na primeira pessoa da vida em Wuhan durante a quarentena, foi traduzido para inglês por Michael Berry e publicado em formato e-book pela HarperVia.

O diário de Fang Fang começa no dia 25 de Janeiro – dois dias depois do isolamento domiciliário imposto pelo governo central chinês em Wuhan. Era o dia do Ano Novo Chinês e Fang Fang, escritora reconhecida e ex-presidente da Associação Provincial de Escritores de Hubei, recebeu uma mensagem do editor da revista literária Harvest 收穫, sugerindo-lhe que começasse a escrever uma série de ensaios ou notas a que poderia chamar “Diário de Wuhan” ou “Notas de uma cidade em quarentena”. Angustiada e ansiosa com a tremenda incerteza perante o destino da cidade, Fang Fang não aceitou o convite à primeira, mas acabou por concordar que registar a vida quotidiana durante esse período podia ser importante. Nesse mesmo dia, publicou a primeira entrada do “Diário de Wuhan” na rede social Weibo. E nas semanas que se seguiram, Fang Fang escreveu mais 59 entradas, relatando as notícias sobre o desenvolvimento da epidemia, incidentes que a afectaram ou que ouviu contar, e foi reflectindo sobre o impacto psicológico do isolamento forçado.

Fang Fang 方 方// Wuhan Diary: Dispatches from a Quarantined City// HarperVia

Nessas anotações diárias, Fang Fang escreveu sobre as muitas actividades quotidianas que foram provocadas, ou alteradas, pela quarentena: os planos organizados pela comunidade para obter e entregar comida a todos os residentes, a deambulação pela cidade para encontrar e comprar máscaras, a prática de dormir o dia inteiro e assumir que isso seria uma maneira de contribuir para o esforço colectivo contra o avanço do vírus, o dia em que ficou sem comida para o seu cão e começou a alimentá-lo com arroz cozido. Para os leitores chineses, ler os registos diários destes 60 dias é como reviver a tempestade que sobre eles se abateu. E para muitos leitores europeus e americanos, agora, também o será. Quando o Dr. Li Wenliang, um dos oito médicos que foram punidos por terem dado o alerta sobre o vírus, morreu depois de ter sido contagiado pelo mesmo vírus sobre o qual alertou, Fang Fang escreveu: «Esta noite, toda a cidade de Wuhan chora por Li Wenliang. E, nunca imaginei, mas o país inteiro também chora por ele.» A autora documentou as mortes de colegas, antigos companheiros de escola e vizinhos: «Estou arrasada, mas pergunto-me se o vírus terá sido a única coisa a engoli-los.» Fang Fang não temeu falar de factos desconfortáveis, apontando outros problemas que terão sido responsáveis pelo desaparecimento de tantas vidas. Quando a entrevista com Zhong Nanshan, especialista em doenças infecciosas, passou na televisão, com o cientista a dizer que o novo coronavírus se transmitia entre pessoas, a autora escreveu: «A minha primeira reacção foi de choque, mas acabou por transformar-se em raiva. Esta nova informação contradizia aquilo que nos foi dito antes pelas autoridades. Os media oficiais sempre nos garantiram que este vírus não era contagioso entre pessoas, que era controlável, evitável.»

A frontalidade de Fang Fang no modo como foi dizendo várias coisas que contradiziam a narrativa oficial atraiu cada vez mais leitores, ansiosos por saber notícias de Wuhan. A incompetência burocrática foi um dos alvos, no dia 4 e Fevereiro: «Muitas pessoas estão agora a perceber o quão sem sentido é sair para a rua e gritar slogans vazios sobre como o nosso país é impressionante. Já sabem que aqueles quadros que fazem conferências sobre educação política, ainda que nunca tenham realizado nenhuma acção concreta, são totalmente inúteis (costumamos referir-nos a eles como pessoas que “vivem da sua boca”). Esses quadros saberão certamente que uma sociedade à qual falta senso comum e que falha na apresentação dos factos não prejudica os seus cidadãos pelas palavras ditas, mas também pela perda de vidas humanas – muitas, muitas vidas humanas.»

A demanda inflexível por responsabilidades fez de Fang Fang uma figura indesejável entre as autoridades. A sua conta do Weibo foi banida, mas o diário continuou a circular em várias plataformas e acabou por alcançar milhões de leitores. Como escreveu o tradutor inglês da obra, Michael Berry, «foram chegando cada vez mais leitores chineses de todo o mundo às publicações de Fang Fang, que acabaram por ser uma plataforma importante para entender o que estava a suceder em Wuhan. Muitas vezes pensamos nos diários como uma forma literária especialmente privada – um lugar onde se registam medos e desejos íntimos, frequentemente num tom mundano sobre o quotidiano, mas o diário de Fang Fang foi sempre um espaço público, um livro aberto.»

Apesar de a maioria dos leitores ter encarado o registo de Fang Fang sobre o que aconteceu em Wuhan como necessário e muito significativo, a autora não deixou de enfrentar alguns ataques, sobretudo por parte de grupos que já a vinham criticando desde a publicação do seu romance, Soft Burial, em 2017. No dia 7 de Abril, a véspera da tão aguardada reabertura de Wuhan, a pré-venda das edições em inglês e alemão do Diário de Wuhan desencadeou uma guerra nas redes sociais liderada por grupos de nacionalistas zelosos. Acusaram Fang Fang de «colocar uma faca nas mãos do Ocidente (para atacar a China)» e alegaram que as traduções constituíam um esforço claro para prejudicar o governo e minar a imagem heróica de Wuhan. Cartazes com enormes caracteres chineses, ao estilo da Revolução Cultural, apareceram nas paredes de Wuhan, exigindo que a escritora prescindisse da sua vida como modo de pedir desculpa ao povo. Um artista de Nanjing afirmou mesmo que uma estátua de Fang Fang ajoelhada deveria ser erguida ao lado da de Qin Hui, traidor da dinastia Song. Fang Fang enfrentou serenamente esses ataques e recusou-se a ser silenciada. Nunca se considerou uma crítica do governo, mas antes uma testemunha, captando as respostas, por vezes admiráveis, que as pessoas apresentavam a esta situação de crise, bem como a própria natureza humana. Acima de tudo, é o seu apelo à memória que perdura: «Lembrem-se das pessoas que morreram, que sofreram uma morte injusta, e desses dias e noites de tristeza. Lembrem-se do que interrompeu as nossas vidas durante o Ano Novo Lunar, naquele que devia ter sido um dia de festa.»

Este Diário de Wuhan talvez fique com uma memória relevante não apenas para a China, mas para o mundo. Para lá do relato pessoal do que aconteceu em Wuhan, do choque e da raiva, os textos de Fang Fang são uma espécie de aviso sobre o que aconteceria se nenhuma precaução fosse tomada. Isso mesmo recorda a autora: «A humanidade não pode continuar perdida na sua própria arrogância. Não podemos continuar a ver-nos como o centro do mundo, a acreditar que somos invencíveis e a subestimar o poder destrutivo de tantas coisas, até as mais ínfimas – como um vírus.»

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