Crítica

Uma espantosa voz poética

Por Stacey Qiao

Yu Xiuhua 余秀華
Moonlight Rests on My Left Palm
Astra House
Tradução de Fiona Sze-Lorrain

Com um poema intitulado «Crossing Half of China to Fuck You», Yu Xiuhua 余秀華 tornou-se uma celebridade instantânea em 2014. O poema fala explicitamente sobre sexo e sobre o desejo da escritora: «I penetrate a hail of bullets to fuck you/I press countless dark nights into one dawn to fuck you/I, as many, run as one to fuck you». Enquanto alguns a condenaram como lasciva, outros elogiaram-na por canalizar a voz de uma mulher assumindo a iniciativa de se relacionar sexualmente. Com isso, a poeta acabou por encontrar um número crescente de leitores, sobretudo entre os mais jovens. Uma mulher com paralisia cerebral, divorciada, mãe solteira na China rural, Yu rapidamente atraiu a atenção de muita gente – e não apenas leitores de poesia – e o seu nome apareceu nas primeiras páginas de jornais, programas de televisão, e nos cantos mais remotos da Internet.

Foi em 2015 que Yu Xiuhua publicou a sua primeira colectânea de poesia e ensaios, 《月光落在左手上》e com ela venceu o Prémio de “Literatura Camponesa” de 2016 e o Prémio Literário de Hubei de 2018. A recepção converteu-se em mais de 300 mil exemplares vendidos na China, fazendo deste o livro de poesia mais vendido do país em várias décadas e assinalando um interesse pela poesia que não se via desde a década de 80. Agora, a sua fenomenal obra de estreia está disponível em inglês. Com o título Moonlight Rests on My Left Palm, o livro foi traduzido por Fiona Sze-Lorrain e publicado pela Astra House a 14 de Setembro deste ano. 

Yu Xiuhua nasceu em 1976, na aldeia Hengdian da província de Hubei, na China central. Com mobilidade física contida e dificuldades de fala e escrita, consequências da paralisia cerebral, não pôde frequentar a faculdade, viajar, ou trabalhar a terra com os seus pais, permanecendo em casa, onde podia ajudar nas tarefas domésticas. Mais tarde, foi forçada a um casamento arranjado, que veio a revelar-se profundamente abusivo. Divorciou-se do marido e voltou a viver com os seus pais, levando o filho com ela. Foi neste percurso de vida invulgar e aparentemente condenado a uma série de becos sem saída que a autora adoptou a poesia como forma de se expressar e de afastar o estigma ligado à sua deficiência e ao seu estatuto de mãe solteira no campo. Desde finais dos anos 90, escreveu milhares de poemas, abordando com frequência temas como o desejo, o amor e os seus obstáculos, a morte e a perda, a doença e a recuperação, e também a crueldade que integra aquilo a que chamamos natureza humana.

No epílogo do livro, Yu escreve sobre a génese da sua poesia, cruzando humor e objectividade: «Por causa da minha paralisia cerebral, tenho de ter muita força para manter o meu equilíbrio, pressionar a mão esquerda contra o pulso direito para torcer e conseguir escrever uma palavra. E de todos os géneros literários, a poesia é a que tem menos palavras, por isso é uma escolha natural». Nesses mundos duramente escritos, a autora explora e partilha corajosamente as suas reflexões sobre a falta que sente de casa, a família e os antepassados, a realidade da deficiência no contexto dos impulsos e desejos de um corpo.

No poema «I Love You», Yu transforma os temas comuns da China rural em imagens vívidas:

In my dumb life, I draw water from a well, cook, take my medicine regularly

When the sun is fine, I place myself inside it, like a dried orange peel

Tea leaves to use on alternate rounds: chrysanthemum, jasmine, rose, lemon

Noutro poema, «Amor», a autora revela o modo como o ambiente rural molda o seu sentido de inclusão dentro de um universo mais vasto:

I will run into the best landscape, the best folk

Wherever they are is my homeland

an ancestral temple where I hear stars in dialogue

Here I am, at this hour

The world shows me how landscapes undulate

However large its secret, however large the sky it opens

At this instant, struck by a secret

I weep, but keep my mouth shut

Para além de poemas, Moonlight Rests on My Left Palm inclui um conjunto de ensaios breves. Organizados por temas e repleto de descrições de episódios da vida da autora, os ensaios dão aos leitores acesso privilegiado ao interior da vida da aldeia e às mudanças que aí têm vindo a ocorrer. Com características formais muito diferentes da poesia, estes textos compõem um diálogo intenso com os poemas de Yu, revistando alguns temas comums como o amor, a mortalidade, o contraste entre o mundo natural e a intervenção humana e a própria escrita. 

A escritora chinesa Wang Anyi disse uma vez que, “aqueles que deram uma contribuição mais significativa para a literatura contemporânea tendem a ser os membros marginalizados da sociedade”. A frase assenta na perfeição no percurso de Yu Xiuhua, agora plasmado neste livro, que se tornou conhecida do público como a “poeta deficiente e camponesa” ou, em modo elogioso por parte de críticos estrangeiros, a “Emily Dickinson da China”. Numa entrevista ao China Youth Daily, a autora rejeitou a ideia dos muitos rótulos que lhe estavam associados, independentemente das boas intenções que poderiam tê-los originado: “Poeta – esse é o único rótulo de que preciso. Quando uma pessoa se afirma através de rótulos, as limitações serão o passo seguinte. Sou uma pessoa com uma personalidade espontânea e vivo a minha vida como me parece adequado. Rotulem-me como quiserem – uma mulher, uma pensadora, uma maluca… Mas uma etiqueta é apenas um pedaço de papel que desaparecerá, mais cedo ou mais tarde”. 

Yu continua a escrever poemas ousados e literariamente inovadores, sem medo de revelar as suas lutas e desejos interiores. «O que é poesia?» escreveu a autora no epílogo deste livro, «não sei e não consigo responder. É o momento em que o meu coração ruge e é aquilo que emerge como um recém-nascido. É como uma muleta quando se caminha de forma instável neste mundo instável. Só quando escrevo poesia é que me sinto completa, em paz e satisfeita». Do lado da recepção,  Moonlight Rests on My Left Palm é também o desconforto, o questionamento e a dúvida, e outra coisa não seria de esperar de um livro com tantas camadas.

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