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“Há muitas coisas que ainda gostava de fazer”

Gonçalo M. Tavares venceu o prémio da Associação Portuguesa de Escritores com o livro “Uma Viagem à Índia”. É uma epopeia dos tempos modernos escrita por um autor que parece capaz de tudo. Até de arriscar e desafiar o cânone.

Hélder Beja

Os fragmentos que a bem dizer não são versos e que compõem “Uma Viagem à Índia” (Caminho) surpreenderam os leitores de Gonçalo M. Tavares. Já se sabia dos livros negros de onde transborda pessimismo; e do bairro imaginário que, título após título, o escritor vai habitando com os autores que lhe são caros. O novo livro é quase inqualificável e é um risco a que parece que, como dizia Pedro Mexia, só Gonçalo M. Tavares podia permitir-se. O resultado está à vista e mereceu a distinção da Associação Portuguesa de Escritores.

Em entrevista, o autor fala desta epopeia imaginária e do anti-herói Bloom (que, como Vasco da Gama, parte de Lisboa), da experiência da viagem e, ao fim e ao cabo, daquilo que o alimenta: as palavras, a escrita e a vontade de fazer um livro ainda mais consistente a seguir.

– Qual é a sua relação, mais ou menos real ou afectiva, com o Oriente e particularmente com a Índia?

Gonçalo M. Tavares – Bem, nunca fui à Índia. Este livro é uma viagem totalmente imaginária. Fica em suspenso a hipótese de não ser uma viagem real do protagonista, Bloom, mas de ser uma viagem imaginária, quase um sonho. O que me parece relevante nessa relação com o Oriente é que todos nós, ocidentais, temos quase instintivamente a ideia que o Oriente é assim uma espécie de lado metafísico e espiritual, enquanto o Ocidente será mais o lado materialista. E é um pouco esta ilusão de que no Oriente o espírito está em todo o lado que está na base da viagem do protagonista.

– Bloom, o anti-herói do livro, acaba por descobrir um mundo relativamente igual em todo o lado.

G.M.T. – Sim, vai encontrando o mesmo. E o que me parece que está a acontecer na relação entre o Ocidente e o Oriente é um pouco isso. Alguns ocidentais vão para o Oriente à espera de encontrar o espírito e, por outro lado, alguns orientais vêm para o Ocidente para encontrar a matéria. É um pouco esse conflito que está na base do livro.

– Há aqui um certo desencanto por aquilo em que se transformou a viagem enquanto experiência, neste mundo dos aeroportos e da globalização?

G.M.T. – Sim… Nunca tinha pensado directamente sobre a questão da viagem, do aeroporto, mas há um pouco isso. Esta viagem apesar de tudo recupera a ideia da viagem enquanto percurso. Não viagem enquanto destino, porque Bloom sai de Lisboa no canto I e só chega no canto VII à Índia. Faz uma viagem estranha, por Paris, Londres… E o que é importante é mesmo o percurso. Só nesse aspecto é uma viagem antiga, porque as contemporâneas são aquelas em que se procura atingir o destino o mais rapidamente possível. Aqui Bloom atrasa-se, não vai pelo caminho mais recto. Interessa-lhe aprender – é uma viagem de aprendizagem.

– Quis fazer uma epopeia dos tempos modernos. Escrever o livro em verso nunca lhe pareceu um risco? Acha que os leitores estão (ou ainda estão) preparados para isso?

G.M.T. – Não lhes chamo exactamente versos, utilizo a palavra fragmentos. Mas percebo isso: há ali uma fórmula, logo de imediato, que remete ou pode remeter para a poesia. Só que ali o corte das frases tem muito mais que ver com a respiração e com algo que não é exactamente poesia conforme a entendemos. Agora, aquela forma é essencial, porque sem ela não escreveria aquele livro. Em relação aos leitores, o que se senti e me surpreendeu foi que – apesar de haver uma surpresa inicial que pode ter que ver com isso que referiu, com uma forma não habitual de contar uma história – as pessoas entram muito bem no livro. Entram no ritmo da escrita e da própria história. Pensava – e ainda penso –  que realmente seria um livro menos fácil, que não é de entrada imediata.

– Para si, enquanto experiência pessoal e criativa, também foi um desafio escrever desta forma não habitual?

G.M.T. – Sim. Quando se muda a forma de escrever muda por completo até o próprio conteúdo, não há comparação possível. Nesse aspecto é evidente que nunca escreveria este livro se não partisse de um conjunto de procedimentos muito distintos. Uma das ideias era recuperar a categoria de epopeia, mas claro que não uma epopeia clássica, não uma epopeia nos moldes antigos. Havia um ponto de partida: será que é possível escrever uma epopeia hoje? E, se é possível, como é que se pode fazer? A epopeia é considerada um género antigo, ultrapassado, morto, e agrada-me esta ideia de voltar à epopeia de uma maneira muito distinta. Esta é quase mesquinha, de feitos quase miseráveis, de um herói que é criminoso ao mesmo tempo. Não é uma epopeia da descrição dos grandes feitos.

– “Os Lusíadas”, nesse aspecto, também têm um papel importante nesta obra, não é verdade?

G.M.T. – Claro. São a estrutura de referência para esta nova viagem. Aqui, ao contrário de “Os Lusíadas”, há uma aventura individual. Em “Os Lusíadas” faz-se a exaltação de uma aventura colectiva. Esta passagem é essencial, porque é a passagem da descrição de um conjunto de feitos heróicos para o outro século, que é o século XXI, um século muito mais individualista, em que é quase estranho pensarmos que um conjunto de homens sai das suas casas e se junta para passar por uma determinada aventura. Hoje, alguém que de certa maneira quer seguir um caminho que tem que ver com a heroicidade, sai sozinho de casa. Acho que também aí há uma grande diferença entre o século dos Descobrimentos e o século actual. Já está tudo descoberto, já tudo tem nome e dono. No livro há uma saída individual para tentar encontrar qualquer coisa que também tem que ver com puros objectivos egoístas de Bloom.

– Descreve Bloom como um individualista. O individualismo é uma das características dos nossos tempos. É também no seu entender um dos ‘pecados’ deste novo mundo?

G.M.T. – Não diria que o individualismo é um ‘pecado’, não queria fazer um juízo de valor. Há toda uma trajectória da cultura, da forma como a sociedade vê o indivíduo, que tem que ver com uma série de conquistas. A formação da identidade individual, a possibilidade de uma pessoa poder decidir de alguma forma o seu destino, a reflexão individual, a possibilidade de participação individual na cidade – tudo isso são conquistas de séculos recentes. Há sempre uma parte de perda e de ganho, mas hoje há uma possibilidade de cada um poder de certa maneira decidir mais coisas do que há três séculos, e isso é um ganho. Agora, o individualismo extremo, como é evidente, é uma das doenças deste século.

– Falando ainda de “Os Lusíadas”, é um desses livros que mudam radicalmente a personalidade das pessoas, como disse noutra entrevista? Para si foi um desses livros?

G.M.T. – Diria que “Os Lusíadas”, tal como as obras clássicas, remete-nos para uma espécie de estado de contemplação. Sinto em relação a “Os Lusíadas” o que sinto ao ver a grande pintura clássica: uma pessoa fica parada a olhar e a apreciar a beleza estética da obra. É uma lógica completamente diferente da que vemos na criação contemporânea, que muitas vezes não tem este lado tão estético. “Os Lusíadas” é uma obra que faz parar, que obriga a pessoa a repetir, porque é uma espécie de som encantatório que remete para a poesia mais nobre.

– Enquanto leitor, ainda consegue encontrar livros desses? Ainda consegue ficar impressionado?

G.M.T. – Felizmente a tarefa da leitura, e da leitura de bons livros, é interminável, porque há sempre grandes livros a surgir. Nós, quanto aos clássicos, temos já uma relação que tem séculos pelo meio. Já não contactamos com a obra directamente, já há uma história sobre a própria obra. Quando lemos pela primeira vez um livro que não conhecíamos, mesmo quando o livro nos marca muito, não tem este impacto cultural que tem um clássico. Um clássico não é apenas o livro, é toda a história que está a seguir: em que é que aquele clássico influenciou outros autores, etc. O livro contemporâneo não tem essa parte do tempo sobre ele.

– Olhando na mesma para trás, já disse que o pessimismo é uma obrigação para um escritor que pode saber o que aconteceu no século XX. Isso reflecte-se apenas na sua escrita ou também na relação com aquilo que o rodeia?

G.M.T. – Acho que está na escrita, apesar de haver também livros, como a série “O Bairro”, que são um outro mundo que de certa maneira é encantatório ou lúdico – e noto aqui algum espaço de fuga através da imaginação. Em termos da vida real, acho que todos nós devemos ter essa consciência da violência e, nesse aspecto, o século XX é marcante. É um expoente da violência e da maldade organizada, que é talvez a mais perigosa. Qualquer pessoa neste século deve estar consciente disso, o que não quer dizer que o seu dia-a-dia dependa disso. Mas é preciso estar atento aos sinais que podem fazer com que se volte a entrar numa situação não digo igual, mas próxima da do século XX.

– Venceu o Prémio da Associação Portuguesa de Escritores com “Uma Viagem à Índia”. Que relação tem com os prémios que recebe?

G.M.T. – Fico honrando e, antes de mais, é um prémio para o livro. Agora, guardo uma certa distância em relação a esse tipo de acontecimentos. O essencial para mim é estar noutro sítio, é concentrar-me e fazer o meu percurso. O que acho que qualquer escritor sério quer é fazer livros que sejam robustos, sólidos. Estou sempre centrado nesse entusiasmo pelo fazer. Tudo o resto é agradável, fico honrado, mas no dia a seguir tem de se voltar ao mesmo desejo e vontade de fazer mais coisas.

– Os escritores talvez nunca se tenham mostrado tanto como hoje. É difícil fugir a esse dia-a-dia mais mediático?

G.M.T. – Tenho períodos em que estou completamente fechado e tento estar no meu canto. Tenho conseguido manter o tempo e o espaço para o essencial, que é a escrita. O fundamental é manter esse tempo, não abdicar dele. Depois tenho grandes períodos de fechamento que acho que são fundamentais.

– Está a escrever neste momento? Tem projectos em marcha?

G.M.T. – Estou a escrever mas ainda estou numa fase em que não sei bem o que é. Em relação à publicação, nada tem que ver, porque eu funciono muito em diferido, em tempos muito diferentes. No meu caso a parte da edição é quase um outro mundo e nem sei bem o que é que vai sair em breve. Há uma ou outra coisa que eventualmente poderá vir a sair, mas não sei quando. Também depende muito de um instinto e de eu me dirigir para textos que estou a trabalhar. Neste momento não há nada em concreto.

– Fala-se muito da quantidade de livros que já publicou, mas também explicou que tinha muita coisa escrita antes de começar a publicar. É um escritor de ideias e não apenas de histórias. Acha que ainda tem muitos livros para escrever?

G.M.T. – O que sinto é que me interesso por coisas completamente diferentes. Há muitas coisas que ainda não fiz e que gostava de fazer, imensas coisas.

– A fechar, e tendo em conta que há uma viagem (apesar de imaginária) no meio desta conversa, os seus livros também se alimentam de novos lugares que descobre e de novas pessoas que conhece?

G.M.T. – Cada vez mais. Passa muito por fases e houve uma fase em que a viagem para mim era um bocado agressiva e considerava-a como uma interrupção. Cada vez mais a viagem é um sítio que me permite ter outro tipo de observação em relação às pessoas. É cada vez mais evidente que é uma experiência de investigação. Felizmente tenho estado em lugares como a Cidade do México, Moscovo, São Petersburgo, Berlim, passei pelo Balcãs, estive na Sérvia, na Croácia. Não são propriamente viagens no sentido clássico, são sítios que têm uma história que faz com que estar lá seja acelerar um conjunto de experiências.

– A Ásia já fez parte dessas viagens?

G.M.T. – Não. É talvez a parte essencial que me falta. Acho que em breve vai acontecer.

 

 

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